Conversa | Estratégias de Comunicação Integrada

Como ter tempo nos toma tempo

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O desejo de ter mais tempo é tão falacioso quanto algumas das verdades prontas (e ingênuas) que ocupam nosso cotidiano: “li e aceito os termos de uso”, “vamos marcar” e “vou ver e te falo”.

Esquecemos o que é ter tempo. Usamos o termo como sinônimo para descanso, mas a cobrança pela produtividade gera uma culpa punitiva. Para ser, é preciso sempre fazer?

Tempo livre?

A industrialização, marcada principalmente pela Revolução Industrial, provocou mudanças estruturais e irreversíveis na sociedade: novas profissões, formas de moradia, condições sanitárias e novas formas de consumo.

O período pós-guerra e a pós-industrialização modificaram ainda mais o cenário e trouxeram uma significativa qualidade de vida. Clay Shirky fala um pouco sobre essa realidade nos Estados Unidos em seu livro Cognitive Surplus: “As tendências pós-guerra de esvaziamento da população rural, crescimento urbano e aumento da densidade suburbana, acompanhada por mais acesso à educação por todos os grupos demográficos, marcaram um aumento significativo do número de pessoas pagas para pensar e falar, em vez de produzir ou transportar objetos.” *

Passamos a ter o que o autor chama de excesso cognitivo (cognitive surplus). Shirky explica que essas melhorias na qualidade de vida fizeram surgir um elemento novo: tempo livre.

Dentre os motivos para o aumento do número de horas ociosas estava o fato de as pessoas estarem trabalhando menos horas e com uma expectativa de vida maior, ou seja, morrendo mais velhas.

E o que fazer com o tempo livre?

Ocupá-lo, ironicamente. No pós-guerra nos Estados Unidos, a resposta era assistir à televisão, a novidade do momento. Acontece que o ato de assistir à TV é individual. Mesmo que o façamos em grupo, o diálogo fica comprometido porque estamos prestando atenção à tela.

Conectados (e cansados)

Hoje, com a internet, nos comunicamos majoritariamente por meio de telas, mas Shirky ressalta que o tempo livre antes gasto individualmente em frente à TV passou a ser encarado mais como um bem genérico a ser utilizado para criar projetos de maneira coletiva.

De consumidores, passamos a participantes e a produtores de conteúdo também, exercendo cada vez mais influência sobre o que empresas, autoridades e instituições fazem ou defendem.

Isso cria um terreno fértil para pensar em novas maneiras e meios de expressão, criação e conexão. Sentir que não estamos sós, apesar de sozinhos, é fundamental para manter estabilidade mental e consistência de ações ao longo do tempo.

O problema começa quando mergulhamos tão fundo nas telas a ponto de despertar ansiedade, síndrome do pensamento acelerado e traços de depressão. O segredo? Filtros.

Em uma aula recente da pós-graduação, discutimos como precisamos aprimorar nossa função de editores mais do que nunca. Buscar a fonte das informações, ler opiniões de pensadores diferentes, polir nosso senso crítico. Combate-se o excesso de informação com qualidade, feita a partir da edição atenta, responsável e experiente.

Sermos editores implica duas coisas: interpretar e receber sempre com cautela as informações que buscamos ou recebemos sobre o mundo exterior, e saber o momento de parar de consumi-las para dar atenção ao universo interior. As duas tarefas são árduas, mas imprescindíveis para buscar uma sobrevivência minimamente sã.

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A beleza no banal

Parar de escutar o lado de fora para enxergar o lado de dentro. Soa poético porque assim o é. Fomos ensinados a rotular as delicadezas da natureza humana como breguice e frescura, mas, no fim do dia, só temos a nós. A inevitabilidade de apenas ser é um convite a — e um desafio de — apreciar nossa própria companhia.

Reaprender a enxergar a beleza no banal é um bom passo em direção a esse desafio. No artigo “Sublime no Banal”, Denilson Lopes defende a importância de discutir a beleza atualmente porque ela nos convida à própria solidão.

Segundo o autor, para encontrar a beleza no banal é preciso, antes, passar pelo elogio e pelo retorno do sublime, definido como uma “experiência de fascínio diante de uma paisagem, uma pessoa ou uma obra de arte”. Lopes inclusive aponta o sublime como a resposta para o nosso cotidiano, que ele questiona se foi transformado em uma experiência multimidiática.

Vivemos em um mundo onde a Comunicação sempre teve um viés utilitário, mas o lado subjetivo é fundamental. Valorizar a presença no detalhe. Renovar o olhar para reprogramar nossas atitudes.

Um surto de cada vez

Moro em Brasília e, por aqui, já passamos do sexagésimo dia de quarentena, decretada oficialmente pelo governador em 13 de março.

As primeiras três semanas foram até boas. Estava mais descansada e disposta para trabalhar, ler e curtir minha casa com mais calma. A mudança de cenário e a desaceleração da rotina foram bem-vindas.

A partir da quarta semana, me exercitar na mesma sala onde também trabalho e assisto aos meus filmes na Netflix começou a perder a graça, o som do rádio ligado na cozinha começou a me irritar e em um piscar d’olhos já eram 23h de quarta, segunda ou sábado, sei lá. A passagem do tempo ficou confusa.

Anteontem, tive duas crises emocionais por uma série de fatores que culminaram em choro e ranger de dentes.

A verdade é que não está tranquilo para ninguém, nem para quem está em casa. Para os que não têm o privilégio de se proteger em casa, então, menos ainda. Já aqueles que acreditam que tudo não passa de uma gripezinha pagarão um preço alto cuja conta, infelizmente, vai para todos nós. Mas isso é assunto para outro texto.

Não dá para largar tudo agora e correr para o Himalaia (ou o destino de viagem que preferir), mas dá para, quando apertar o peito, parar o que estivermos fazendo e nos permitir ter mais calma e paciência. Não tem receita de bolo, mas pode ter um pedaço de torta na cozinha que te faça bem. Ou um café da tarde para levantar os ânimos.

E, por mais que não possamos desfrutar do toque, do beijo ou do abraço, nessas horas a tecnologia entra como grande aliada para buscar um pouco de calor humano. Não é a mesma coisa, mas sabe como é: a gente faz o que pode com aquilo que tem. E, se pararmos para pensar, o que temos é extraordinário.

Aguentemos firmes, fortes e dentro de casa. Vai passar.

Por Gabriela Brito, analista de Comunicação do Conversa.

Publicado originalmente no MEDIUM.

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*Tradução livre do trecho “The postwar trends of emptying rural populations, urban growth, and increased suburban density, accompanied by rising educational attainment across almost all demographic groups, have marked a huge increase in the number of people paid to think or talk, rather than to produce or transport objects.” (SHIRKY, 2010, p. 13).