Quantas vezes já ouvimos em algum lugar que havia “gays demais na televisão” ou “negros demais na publicidade”, por exemplo? Basta um olhar mais atento para identificar que estes alvos de reclamação representam, geralmente, um ou dois personagens em um elenco inteiro. Ou uma propaganda inclusiva perdida em um universo de horas de conteúdo com famílias em formato tradicional (com pai, mãe e filhos), brancas e heterossexuais que em praticamente nada representam a nossa sociedade diversa e miscigenada. Mas, então, por que isso incomoda tanto?
Isso não é algo novo
Para chegar à melhor resposta eu contei com a ajuda de uma psicóloga e ex-professora da época de faculdade , Cristiane Palma, que colaborou com todo o material de referência que teremos aqui. E o mais impressionante é que o primeiro é de mais de um século atrás, mais precisamente de 1919, quando Freud já falava isso em seu texto “Das unheimliche”, sendo “unheimlich” uma palavra que define um estrangeiro, hora ou lugar estranho, inquietante, desconfortável, sombrio, obscuro, assombrado, repulsivo, sinistro, suspeito, lúgubre, demoníaco.
Freud liga diretamente o estranho (unheimlich) ao recalque. Vale lembrar que o conceito de recalque aqui não é o mesmo que se tornou popular nos últimos anos, remetendo à inveja, mas sim o da psicanálise, que significa “reprimir ou conter”. Sendo assim, o recalque é um movimento contra algo que se esperava que tivesse permanecido “secreto e oculto”, mas que veio à tona.
A consequência deste movimento é uma repressão nociva, como exemplifica um relato no livro “Estigma”, de Erving Goffman: “Quando se fazia piadas sobre ‘bichas’, eu tinha que rir com as outras pessoas, e quando se falava sobre mulheres eu tinha que inventar minhas próprias conquistas. Eu me odiava em tais momentos, mas aparentemente não havia outra coisa que eu pudesse fazer. Toda a minha vida se converteu numa mentira”.
Ford x American Way of Life x Publicidade
Neste sentido, vale lembrar que existe um ponto no qual três fatores se encontram e formam uma força que norteia a nossa sociedade: o fordismo, o american way of life e a publicidade. O fordismo instaurou as jornadas de trabalho calcadas em 1/3 do seu dia, em horas líquidas (sem contar transporte e horário de almoço), enquanto o american way of life decretou como um padrão a família feliz e saudável composta por pai, mãe e filhos brancos cujas necessidades são perfeitamente supridas pelo sistema que eles ajudam a proteger. E onde entra a publicidade nesta equação? Bom, ela ajuda a vender em todas as suas peças essa mesma família como o ideal.
E essa junção ajuda a criar aberrações históricas como esta imagem, na qual uma fila de negros desempregados aguarda para receber um prato de sopa durante a crise de 1929 em frente a um anúncio com a família padrão representando felicidade acompanhada das frases “O melhor padrão de vida do mundo. Não há jeito melhor que o jeito americano.”
O enfraquecimento através da exclusão
Nota-se que o problema não é da representação de uma minoria, mas sim do fato de esta minoria receber o mesmo espaço que os demais em posição de voz e respeito. Para que isso ocorra, faz-se uma diferenciação entre população e sociedade. Eles e nós. A causa alheia e a minha.
Como define o estudo “Pressupostos psicossociais da exclusão: competitividade e culpabilização”, de Pedrinho Arcides Guareschi, “Na legitimação da exclusão (…) o ser humano é definido como um indivíduo, isto é, alguém que é um, mas não tem nada a ver com os outros. O ser humano, pensado sempre fora da relação, é o único responsável pelo seu êxito ou pelo seu fracasso. Legitima-se quem vence, degrada-se o vencido, o excluído”.
O fortalecimento através da união
Se o problema é o individualismo, a solução é coletiva. Boaventura de Sousa Santos propõe, em seu livro “Pela Mão de Alice – O Social e o Político na Pós-Modernidade”, que o conceito de democracia não se restrinja apenas ao ato de votar, mas que se estenda a uma articulação entre democracia representativa e democracia participativa, levando em consideração quatro espaços políticos estruturais: o espaço político, o espaço doméstico, o espaço da produção e o espaço mundial.
Como havia notado Freud, toda repressão vem após um incômodo com algo diferente. Se há algo diferente aparecendo, há ali uma representatividade que não pode mais ser ignorada. É o sinal da quebra de paradigmas que leva a uma evolução da sociedade.
Vivemos em um momento de transformação no qual representantes do sistema se esforçam para que novas vozes e novos rostos não surjam e cabe a nós, na comunicação, representarmos esta ruptura no dia a dia. É nosso o papel de promover a população ao invés da sociedade.
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Marco Faria é social media, planner e roteirista do Conversa Estratégias de Comunicação Integrada