Não, esse não é mais um texto falando sobre o ‘fenômeno Juliette nas redes sociais’. Tampouco venho aqui para falar sobre os assombrosos números da participante do BBB mais famosa dos últimos tempos. Já sabemos que seu alcance, em especial no Instagram, é equivalente ao de grandes celebridades mundiais, como Justin Bieber e Katy Perry. Seu último recorde, inclusive, a equipara à cantora Billie Eilish ao atingir um milhão de curtidas em sua foto em apenas seis minutos. Esse furacão já é conhecido por todos nós.
Mas como esse fenômeno foi construído visualmente? Em especial, quais são os elementos semióticos que a definem como persona midiática? Como designer gráfico e nordestino, tenho pensado bastante sobre o significado dos elementos visuais que compõem a imagem de Juliette nas redes sociais. Os cactos, o chapéu de couro, o milho: elementos que identificam e caracterizam a participante. Qual o papel desses signos? O que eles adicionam à narrativa dela e, principalmente, o que eles dizem ao público?
A criação do cacto
A semiótica é o estudo do significado, da estrutura e do funcionamento da comunicação e o impacto dos signos nas percepções culturais e na comunicação humana. Complicou? Dá pra facilitar. Em bom português, é o estudo dos símbolos – sejam eles quais forem – na nossa comunicação. Desde uma palavra a uma placa. Um quadro e um ícone de ‘Banheiro Masculino’. Nesse caso daqui, um cacto. O cacto da Juliette.
A participante do BBB chegou à casa reforçando o seu orgulho por ser nordestina. Não é à toa que sua trilha sonora no programa é uma música do cantor Chico César com o forrozeiro Dominguinhos. Em todos os seus quadros (os VTs, para os viciados em BBB como eu), a edição do programa reafirma a sua origem e, principalmente, o seu orgulho (com razão). Juliette fala da região com exaltação e uma certa ufania, apresentando o Nordeste com um saudosismo que só quem é nordestino expatriado reconhece.
Espaço da Saudade
Esse saudosismo, porém, é um velho conhecido da nossa cultura. Em seu livro ‘A Invenção do Nordeste e outras artes’, o historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior pontua que o conceito de “Nordeste” que conhecemos surgiu como um “espaço da saudade”. No início do século XX, diversos artistas, escritores, pintores e músicos representavam e apresentavam a região como um local de passado ufanista. ‘Não há, ó gente, ó não, luar como esse do sertão’, já cantou Luiz Gonzaga.
Esses artistas, filhos e herdeiros dos oligarcas da região, reproduziram tal crise em suas obras e assim fortaleceram o imaginário da saudade, na valorização da tradição e do passado rural do Brasil.
Essa narrativa de ‘espaço da saudade’, porém, não surgiu involuntariamente e tem como fator determinante a trajetória política e econômica do país à época. Com o declínio da oligarquia nordestina e a ascensão da burguesia industrial da região Sudeste, há o início de uma crise dos elementos culturais na produção artística brasileira. Surge assim um embate entre a tradição, aqui vista como o saudoso Nordeste rural, e a modernidade efervescente da região Sudeste. Esses artistas, filhos e herdeiros dos oligarcas da região, reproduziram tal crise em suas obras e assim fortaleceram o imaginário da saudade, na valorização da tradição e do passado rural do Brasil. Como afirma Durval Muniz em seu livro:
“contribuirão decisivamente as obras sociológicas e artísticas de filhos dessa ‘elite regional’ desterritorializada, no esforço de criar novos territórios existenciais e sociais, capazes de resgatar o passado de glória da região, o fausto da casa-grande, a ‘docilidade’ da senzala, a ‘paz e estabilidade’ do Império. O Nordeste é gestado e instituído na obra sociológica de Gilberto Freyre, nas obras de romancistas como José Américo de Almeida, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz; na obra de pintores como Cícero Dias, Lula Cardoso Ayres etc. O Nordeste é gestado como espaço da saudade dos tempos de glória, saudades do engenho, da sinhá, do sinhô, da Nega Fulô, do sertão e do sertanejo puro e natural, força telúrica da região.” (Albuquerque Júnior, 1999:35)
Bagagem Cultural
Voltamos ao cacto e ao chapéu de couro da participante. Com esses conceitos em mente, é preciso questionar: a utilização desses elementos na comunicação digital da Juliette é de emancipação ou de lugar comum? Usam-se esses elementos para reforçar estereótipos da região ou para fortalecer uma linguagem recorrente da mídia mainstream?
No livro ‘Políticas do design: um guia (não tão) global de comunicação visual’, o escritor Ruben Pater afirma que “reconhecer que a comunicação não é neutra põe tudo em perspectiva e nos ajuda a entender por que a comunicação fracassa com tanta frequência: ela depende da bagagem cultural de cada um”. A partir desse princípio, podemos embasar o uso destes elementos saturados na comunicação da participante: eles são de fácil reconhecimento e compreensão por parte de um público enorme com bagagens diversas. “Figuras cujos detalhes são claros a todos estão livres das limitações da linguagem: são internacionais”, afirma o filósofo austríaco Otto Neurath.
Qual Nordeste nós mostramos?
Quero reforçar que este não é um texto anti-Juliette. Sou nordestino, escrevo esse texto agora ao som de Zé Vaqueiro e torço para a participante ganhar o prêmio final do programa. Porém, como designer, acredito que precisamos forçar essa reflexão: esses ícones, como o cacto e o chapéu de couro, refletem a participante? Refletem o Nordeste de 2021? Eles condizem com a dicotomia que é Juliette? Elementos que ilustraram o Nordeste de 100 anos atrás, da estética da seca, precisam ser reforçados hoje em dia? E principalmente: se alterados, quais outros ícones seriam utilizados para apresentar esse novo Nordeste ao Brasil?
Se alterados, quais outros ícones seriam utilizados para apresentar esse novo Nordeste ao Brasil?
Há o Nordeste da Seca, mas também há o Nordeste do do ‘Vale do Silício’ brasileiro em Recife. Há o Nordeste do Cacto, mas há o Nordeste da cultura pungente que transforma Salvador. Aqui cabe pensar: qual Nordeste está sendo apresentado na mídia? Porquê? Longe da ousadia de tirar conclusões, acredito que ambos existem e são válidos. O uso de seus elementos, por sua vez, deve ser consciente e sem a falsa pretensão de neutralidade e não-intencionalidade.
Nordeste nunca houve
Belchior cantava que “O Nordeste é uma ficção, o Nordeste nunca houve”. Com essa música na cabeça, relembramos que imagens e símbolos também são figuras mutáveis, sob o escrutínio da história, da adaptação social e das mensagens que criam, inclusive por participantes do maior reality show do Brasil.
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Dudu Lessa é designer gráfico do Conversa Estratégias de Comunicação Integrada